Brasil concentra maior volume de água doce do mundo, mas vem secando nas últimas décadas. Para especialista, redução indica aquecimento global em curso
O Brasil concentra o maior volume de água doce do mundo: 12% das reservas hídricas do planeta e 53% dos recursos hídricos da América do Sul estão em território nacional.
Apesar dessa abundância, o país passou por três grandes secas nos últimos 20 anos. A mais recente delas, ocorrida em 2021, foi a mais severa registrada em 90 anos. Um levantamento da rede de cientistas MapBiomas mostrou ainda que o Brasil está secando: enquanto em 1991 o país era coberto por 19,7 milhões de hectares de água, em 2022 essa área caiu para 18,2 milhões de hectares, uma diminuição de quase 8% da superfície hídrica.
Essa perda, segundo o coordenador da plataforma MapBiomas Água, Carlos Souza Junior, pode estar relacionada com a diminuição das águas subterrâneas, os aquíferos, que abastecem rios e demais corpos hídricos. O especialista aponta ainda as mudanças climáticas e o desmatamento como fatores que explicam esse cenário preocupante.
"Um terreno desmatado, ou seja, sem vegetação, não tem tempo de absorver a água, porque o escoamento na sua superfície é muito rápido. Sem a absorção, não há o abastecimento do solo e subsolo ", diz Souza.
Em entrevista à Deutsche Welle, o pesquisador lembra da importância da floresta amazônica na regulação das chuvas no Brasil e em todo o continente americano, e indica caminhos para tentar interromper a seca que está em curso no país.
Deutsche Welle: A área coberta por água doce no Brasil diminuiu cerca de 8% nas últimas três décadas. O que significa dizer que o país perdeu superfície de água?
Carlos Souza Junior: Ainda não temos um diagnóstico definido, mas temos um estudo na bacia do Rio São Francisco que mostra que a redução da superfície de água teve alta correlação com a redução de água nos aquíferos. Ou seja, se está reduzindo a quantidade de água na superfície, possivelmente os aquíferos já estão comprometidos.
DW: A Amazônia e a Mata Atlântica têm as maiores reservas de água doce no Brasil, concentrando 60% e 12% de todos os recursos hídricos do território, mas o Cerrado é o bioma considerado a caixa d'água do país. Por quê?
CSJ: O Cerrado abriga muitas nascentes de rios. Por isso, ele tem um papel importante de prover água para várias bacias que estão tanto dentro quanto fora do bioma. Apesar dessa importância hídrica, o Cerrado sofre uma pressão muito forte do agronegócio, atividade que é grande consumidora de água e está ligada ao desmatamento.
DW: Por falar em desmatamento, como ele interfere na quantidade de água doce disponível no país?
CSJ: A vegetação natural é importante para equilibrar a umidade e temperatura local, já que ela consegue reter a água no terreno e, com isso, diminuir o retorno da radiação solar para a atmosfera. Porém, um terreno desmatado, ou seja, sem vegetação, não tem tempo de absorver a água, porque o escoamento na sua superfície é muito rápido. Sem a absorção, não há o abastecimento do solo e subsolo.
DW: Quando pensamos somente na Amazônia, região rica em rios, o impacto do desmatamento no ciclo hidrológico é maior?
CSJ: O desmatamento na Amazônia é um problema local, porque afeta as bacias hidrográficas da região desmatada, mas também global, já que a floresta funciona como uma potente bomba hidráulica capaz de regular o ciclo hidrológico de todo o continente americano.
Quando chove, as raízes da vegetação absorvem a água e a retém no solo. Essa água absorvida pela floresta irá voltar para a atmosfera através da transpiração das plantas e abastecerá as nuvens, que serão carregadas para outras regiões por meio dos ventos. É o processo chamado de rios voadores. Porém, conforme removemos a floresta, o ecossistema amazônico vai perdendo essa capacidade de retornar a umidade para a atmosfera, faltando água para abastecer as nuvens. Por isso, ao interferir nos rios voadores, o desmatamento na Amazônia pode afetar as chuvas no continente.
DW: É possível dizer se as mudanças climáticas já estão afetando a quantidade de água doce no Brasil?
CSJ: Os sistemas aquáticos são os mais vulneráveis aos efeitos climáticos. Um exemplo são as áreas de várzea na Amazônia, um tipo de vegetação que está temporária ou permanentemente inundada. Mesmo distantes das áreas de desmatamento, temos observado que as várzeas estão perdendo água. Se não é o desmatamento da floresta, a causa de as várzeas estarem secando é uma evaporação causada pelo aquecimento local, uma vez que os verões na Amazônia estão cada vez mais secos, longos e quentes. Ou seja, a perda de água nas várzeas é um alerta de que as mudanças climáticas já estão causando alterações nos nossos sistemas aquáticos, assim como a redução de água no Pantanal. [Entre 1985 e 2022, a superfície de água no Pantanal diminuiu 81,7%, segundo dados do MapBiomas Água.
DW: Apesar de o Brasil ter recuperado 1,7 milhões de hectares de água no ano passado em comparação com 2021, ano em que o país registrou a menor quantidade de água doce nos últimos 30 anos, a diminuição da superfície hídrica no Mato Grosso (-48%) e Mato Grosso do Sul (-23%) chamam atenção. O que explica essas perdas em ambos os estados?
CSJ: A perda hídrica nesses estados é resultado da remoção da vegetação natural ao longo do tempo, conjugado com as mudanças climáticas, que são amplificadas nesses locais pelo desmatamento. Sem a vegetação natural, esses estados têm dificuldade em absorver e reter a água no solo. Há, ainda, a presença de uma infraestrutura que afeta a quantidade de água, como barragens de pequena, média e larga escala, que reduzem o fluxo dos rios.
DW: Como garantir que não falte água doce potável no futuro?
CSJ: Com um conjunto de medidas que envolve desde políticas públicas a campanhas de conscientização em massa sobre o uso racional da água e conservação. Cada um tem que fazer a sua parte. Também vai ser preciso acabar com o desmatamento em todos os biomas, além de evitar a construção de represas e barragens, mudar a lógica de produção do agronegócio e investir em planejamento de paisagem para evitar campos de produção agrícola muito extensos e sem vegetação. Temos ainda a questão dos insumos químicos no campo, como fertilizantes e defensivos usados na agricultura de larga escala. Com as chuvas, esses insumos desaguam nos ecossistemas aquáticos, causando um problema sério de contaminação da biodiversidade nos rios e lagos e das águas subterrâneas.
DW: Se chegarmos a um ponto crítico de disponibilidade de água doce, dessalinizar a água do mar será uma opção?
CSJ: Isso é algo muito caro. Se chegarmos ao nível de ter que recorrer à dessalinização da água, é porque já perdemos a luta contra as mudanças climáticas.