Arroz de carreteiro (sem hífens, na norma culta), arroz carreteiro, no trato popular, ou, simplesmente, carreteiro, para os íntimos - abreviar mais do que isso pode resultar em "carrê"... e provocar uma confusão culinária.
Variações de nome à parte, esta receita (basicamente arroz e charque preparados na mesma panela) tem presença garantida nas listas dos maiores símbolos da cozinha popular brasileira e, sobretudo, da gaúcha.
O arroz é um dos fortes da produção agrícola nos campos gaúchos. Em 2020, por exemplo, o Rio Grande do Sul colheu cerca de 70% do total deste cereal no Brasil. No caso do charque, esse tipo de carne salgada e seca movimentou a economia do estado entre o fim do século 18 e o início do século 20.
"É um prato com ingredientes marcantes para a região, que ajudam a contar a nossa história", afirma o chef gaúcho Marcos Livi.
Um prato para viagem
A forte ligação do arroz de carreteiro com a história, a economia e a cultura do Rio Grande do Sul já fica evidente no nome. "Carreteiro" refere-se aos condutores de carros de boi (como os da foto acima) que, no Brasil Colônia, transportavam mercadorias pelos pampas gaúcho, uruguaio e argentino. Costumavam partir das fazendas levando itens como couro, lã, fumo e açúcar. No retorno, traziam artigos imprescindíveis para a vida campeira.
A combinação de longas viagens, estradas precárias e baixa velocidade (três quilômetros por hora) rendia diversas paradas no caminho, muitas sem qualquer estrutura de apoio. Nessas pausas, a alimentação tinha que ser prática e rápida.
Sem acesso à refrigeração, os viajantes uniam, numa panela de ferro sob calor de fogo, três ingredientes não-perecíveis: arroz, charque e água.
Quando tinham em mãos, acrescentavam cebola para reforçar o tempero, que dependia apenas do sal liberado pelos pedaços de carne.
Não há local de nascimento, autoria ou data que marquem oficialmente o início dessa tradição culinária. O arroz de carreteiro, porém, seguramente foi impulsionado no estado pelo Ciclo do Charque, que tornou esse tipo de carne mais acessível a partir do fim do século 18.
Carne com raiz nordestina
Apesar do termo "charque" ter sido cunhado no Sul, o ingrediente mais marcante do arroz de carreteiro não é 100% sulista. Na verdade, a técnica de curar a carne em larga escala por salga foi levada do Nordeste para lá por um português, José Pinto Martins, em 1779.
Ele produzia carne-seca no Ceará. Na época, porém, houve uma grande emigração da região rumo ao Sul. Pinto Martins seguiu a onda, desembarcou na cidade de Rio Grande e fundou, em Pelotas, a primeira charqueada (fazenda produtora de charque). Começava ali o período nobre do Ciclo do Charque.
Em 1820, a região tinha 22 charqueadas. No ano de 1873, já eram 38.
O produto impulsionou a economia do estado, foi vendido em diversas regiões do Brasil e virou item de exportação.
O ritmo começou a cair em 1888, com a promulgação da Lei Áurea. A produção, afinal, era sustentada pela mão de obra de negros escravizados. Eram eles que abatiam o gado proveniente de toda a Campanha gaúcha, cortavam as mantas de carne, as salgavam e secavam ao sol.
No início do século 20, o Ciclo do Charque perdeu muito da sua força com o surgimento dos primeiros frigoríficos, que trouxeram uma nova maneira de conservar carnes.
Confusão carnal
A diferença entre charque e carne-seca não é meramente geográfica. Importam também o tempo e o local de cura, além do tipo de carne e da quantidade de sal. Essas variações, aliás, deram origem a outros exemplares da mesma família: a carne de sol (também chamada de carne de vento) e a carne serenada.
A carne-seca (ou jabá) geralmente é produzida com cortes bovinos de alcatra e contrafilé. Esticados em mantas e salgados, eles são expostos à luz do dia (com incidência solar baixa ou moderada) até perderem, pelo menos, 50% de umidade.
Já o charque é normalmente feito de cortes do dianteiro do boi, que têm mais gordura e encaram uma maior quantidade de sal e tempo de cura. Por isso, em relação à carne-seca, ele apresenta mais durabilidade e intensidade de odor e sabor.
A nordestina carne de sol e a carne serenada, típica do Cerrado mineiro, passam por curas mais suaves, não são expostas diretamente ao sol, têm mais umidade e, por isso, menor prazo de validade.
O carreteiro e o churrasqueiro
Como ocorre com quase todas as receitas no mundo, o carreteiro prosaico, de beira de estrada, ganhou ingredientes e adaptações com o passar do tempo. No livro "Arroz! Assim cozinha a humanidade", o jornalista, escritor e cronista gastronômico J. A. Dias Lopes escreve que, na receita primitiva, podia-se acrescentar ovos cozidos e tempero verde. E que uma pitada de pimenta não contrariava a tradição. Nada mais.
Para a jornalista e pesquisadora da área de gastronomia Bete Duarte, o primeiro desvio histórico nos preparos originais foi feito pelos campeiros que conduziam gado no estado. E envolveu a estrela do prato. Segundo ela, os peões esporadicamente matavam um boi e o assavam para alimentar a comitiva.
As sobras não podiam ser desperdiçadas e, muitas vezes, substituíam o charque. Esta, lembra Bete, é uma prática que se mantém até hoje. "Muitos gaúchos transformaram essa receita de viajantes numa solução fácil de prato para o dia seguinte ao churrasco".
Mas, se a maior instituição culinária do estado pode ser vista como um "ruído" aqui, não dá para dizer o mesmo na difusão do carreteiro pelo país, um movimento no qual as churrascarias gaúchas exerceram um papel decisivo.
Carga extra na carreta
A popularização do prato no Brasil, consolidada na segunda metade do século 20, também impulsionou novas versões e releituras regionais do arroz de carreteiro. Começam a surgir adendos como tomate, pimentões, linguiça, bacon e até o uso de outras folhas, a exemplo de coentro e agrião.
"Acredito que várias dessas criações estão associadas a uma leitura preconceituosa, que vê a fórmula original do arroz de carreteiro como algo pobre", diz Bete Duarte.
Na sua mesa, a jornalista e pesquisadora de Porto Alegre prefere ver outros ingredientes e cores como acompanhamentos do prato.
Esse casamento culinário não é apenas um hit gaúcho. A seguir, mais pratos dessa combinação em outras regiões do Brasil:
Arroz Biro-Biro (São Paulo)
Arroz, bacon, ovo, cebola à tirolesa (tiras embebidas em cerveja, empanadas e fritas), batata-palha e salsinha.
Arroz de Suã (Minas Gerais)
Arroz, lombo suíno, cenoura, tomate, cebola, quiabo, ervas, cúrcuma, colorau, cominho, cachaça e pimenta dedo-de-moça.
Arroz de Puta Rica (Goiás)
Arroz, linguiça calabresa, toucinho, sobrecoxa de frango, carne de sol, milho verde, palmito, ervilha, azeitona e uva-passa.
Arroz Maria Isabel (Piauí)
Arroz, carne de sol, cebola, pimentão, alho, pimenta-do-reino, coentro e cebolinha verde.
Ingredientes:
500 g de charque;
1 colher (sopa) de óleo;
Meia cebola média picada;
2 dentes de alho amassados;
4 tomates sem pele picados;
2 xícaras (chá) de água quente;
1 xícara (chá) de arroz;
Meio maço de cebolinha-verde picada.
Modo de preparo:
Em uma panela de pressão, cozinhe a charque por cerca de 20 minutos. Escorra a água da panela e corte a charque em cubinhos. Reserve.
Em uma panela (preferencialmente de ferro), aqueça o óleo e refogue a cebola e o alho. Junte a charque e deixe fritar até dourar. Acrescente os tomates e, em seguida, o arroz. Junte a água quente e deixe cozinhar o arroz (cerca de 15 minutos), sem deixar secar totalmente.
Desligue o fogo e mantenha a panela tampada por 5 minutos. Em seguida, acrescente a cebolinha verde e sirva.