Por Leandro Alexandre da Silva (*)
Durante cerca de 350 anos o trabalho e a vida de seres humanos africanos foram explorados nessa terra que chamamos Brasil. Esse trabalho foi o sustentáculo econômico da colônia e depois império, justamente nos momentos em que o país mais precisou, ou seja, quando nada havia aqui. Estradas, ruas e ruelas. Portos e ferrovias. Casas, casinhas, casebres e até palácios. Açúcar, café, milho, carne, couro, ouro, prata e diamantes. Tudo de comer e de beber, de usar e de trocar, produzido por meio do trabalho de pessoas escravizadas.
É incômodo pensar que nesse momento os negros tinham um lugar no Brasil. E muito embora fosse um lugar de escravidão era, em si, um lugar. Ter um lugar significa fazer parte e ser importante em algo. Nesse caso os escravizados eram mais que importantes, eles eram essenciais no projeto de desenvolvimento traçado pelas elites do Brasil nascente. Eram importantes e essenciais sim, mas muito mais como peças valiosas de um ativo econômico do que como seres humanos.
Muitos se perguntam o porquê de os portugueses terem escolhido os africanos. Muitas respostas já foram ensaiadas. Porque os índios não se curvaram. Porque os africanos já tinham em si a cultura agrária. Ou porque eram inferiores? Não. A resposta é mais simples. A escravização de africanos integrou uma parte essencial da economia colonial. Comprar, escravizar e vender africanos se tornou um negócio a parte, muito lucrativo por sinal. A escravização de seres humanos e seu tráfico criou um mercado mundial que interligava Europa, África e América por meio de uma ponte chamada Oceano Atlântico. É isso, escravizar africanos proporcionava um duplo benefício. Mão de obra para o trabalho e lucro para os bolsos dos envolvidos no comércio.
Mas, havia um dilema. Como um homem de bem poderia ser um cristão temente a Deus, praticante das boas obras de Cristo e ao mesmo tempo um escravagista vil, torturador, estuprador e explorador de outro ser humano? Impossível! E é por isso que os escravizados eram desumanizados. O escravagista só poderia cometer essas barbaridades contra não-humanos. Contra pessoa sem alma. Contra animais. Então durante todo o tempo em que a escravidão vigorou por aqui, o país foi dividido entre, de um lado os seres humanos, cristãos, homens e mulheres de bem brancos, proprietários, empreendedores, geradores de riqueza e seus filhos e do outro lado animais irracionais, peças, objetos, coisas sobre os quais toda a violência poderia ser justificada.
Essa crença de que os africanos escravizados não eram gente. Que eram seres inferiores, animais irracionais, peças ou objetos nós podemos chamar de racismo. O racismo é essa mentalidade supremacista. Em 1888 a escravidão, que essa altura já era insustentável, foi abolida no Brasil por meio de uma lei. A lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, acabou com a escravidão institucionalizada. Mas será que uma lei também pode mudar a mentalidade do povo? Evidente que não.
A mentalidade escravista, violenta, supremacista jamais foi abolida no Brasil. Mesmo que por vezes calada, silenciada, velada essa mentalidade sempre foi reproduzida. O racismo da boca pequena, ao pé do ouvido jamais foi extinto. Ele faz parte dos valores dos brasileiros e está presente em cada relação, em cada pensamento e em cada instituição desse país. O racismo faz parte do ser brasileiro. Somos racistas, pois assim aprendemos a ser. O racismo não nos pede permissão de morada, ele se impõe, visto que a sociedade é racista e nós, em nossa formação, absorvemos os valores da sociedade. E se nós somos racistas então a escola também é, os hospitais também, a polícia, a política e a justiça também são. Somos racistas e essa é a condição sociológica que explica a situação atual dos negros.
Somos racistas. Somos racistas, por mais que isso doa e incomode, precisamos falar isso em voz alta. Precisamos gritar isso a todo pulmão. O Brasil é um país racistas. Não podemos mais esconder esse fato. O mito da democracia racial. A união perfeita entre brancos, negros e índios é tudo balela. Os dados estão aí para provar a farsa. Dados de emprego, renda, analfabetismo, violência, homicídios, encarceramento, ensino superior, habitação, tudo. Sempre os negros nas piores posições, pois o Brasil é um país racista e nós somos o Brasil.
Tudo bem, todos países têm seus demônios e suas chagas. Os alemães e o nazismo, os italianos e o fascismo, os japoneses e as atrocidades cometidas na China, os estadunidenses e o massacre dos nativos americanos, a Trilha das Lágrimas. Mas não se avança como nação ignorando, nem varrendo para debaixo do tapete o que nos aflige. Sob o risco de esse fantasma nos assombrar para todo o sempre.
Além de não abolir a mentalidade racista, o ato abolicionista extinguiu o lugar do negro afrodescendente no projeto de nação das elites brasileiras. Surgia um novo problema para essas elites. E agora, o que fazer com esse contingente? Devolver para a África? Exterminar? Banir? Não podendo fazer desaparecer em um passe de mágica todo esse contingente que, na visão ideológica da época, não tinha mais serventia, optou-se pela marginalização e invisibilização dessas pessoas. E essa é a condição política que explica a situação dos negros atualmente.
Certo, então temos as seguintes condições que contribuem para explicar à situação das pessoas negras no Brasil. A mentalidade escravista que resistiu a abolição, que chamo de condição sociológica. E a invisibilização e marginalização a qual essas pessoas foram submetidas nos pós-abolição, que chamo de condição política, pois considero isso parte de um projeto político escolhido pela nação. No final do século XIX e início do XX foram feitos esforços para invisibilizar biologicamente a população negra. A esperança era que os imigrantes substituíssem os negros como força de trabalho e que, com a imigração subvencionada de europeus para o Brasil, dentro de cerca de quatro gerações não existiriam mais negros.
O projeto político de invisibilizar os negros não deu totalmente certo, muito menos a política de embranquecimento. É o erro de não levar em conta o elemento humano. É inerente ao ser humano se adaptar e procurar utilizar as ferramentas a sua disposição da maneira mais eficiente possível. Nem os escravizados aceitavam a escravidão. Nem os negros aceitaram o silenciamento e a marginalização. Da prisão na África, ao desembarque na América. Do mercado de escravos no Valongo à casa, roça ou mina do senhor. Nas rezas, na dança, na comida e no jogo de capoeira. No açoite, no gemido, no grito de dor, na cadeia e até na morte. Houve luta e há luta.
E não estou me referindo apenas ao tipo de luta ou fuga que muitas vezes é atribuído aos escravizados. Essa é apenas mais uma forma de animalizá-los. Houve diversas formas de lutas. Das mais brutais e rústicas até as mais sofisticadas e elaboradas. Sim, eles fugiram e se aquilombaram como em Palmares. Mataram os senhores, as senhoras e seus herdeiros. Por vezes mataram a si próprios em um último ato de bravura por considerar ser melhor morrer do que perder a liberdade. Quebraram, queimaram, destruíram e sabotaram sim. Mas, também articularam apoio político. Negociaram melhores condições de trabalho. Fizeram pressão, escreveram manifestos, defenderam-se em cortes.
André Rebouças (1838-1898), homem negro, foi físico, matemático, militar, engenheiro, advogado e conselheiro de D. Pedro II trabalhou para dar terras aos libertos. Luis Gama (1830-1882) ex-escravo que se tornou advogado entrava com ações na justiça para libertar escravos. Calcula-se que tenha conseguido a liberdade de cerca de 500 pessoas. A escravizada Adelina (séc XIX) que, tendo aprendido a ler, atuou como espiã para a causa abolicionista em São Luís do Maranhão. Francisco José do Nascimento (1839-1914) o Dragão do Mar que liderou uma greve de jangadeiros no Ceará, primeiro estado a abolir a escravidão. Maria Firmina (1822-1917), mulher negra e escritora do primeiro romance abolicionista do Brasil “Úrsula”, enfim são diversos exemplos de luta.
As histórias citadas são apenas uma gota d’água no imenso oceano de luta de negras e negros por liberdade. A luta é diária. Para viver. Para poder estudar. Para trabalhar. Para não ser discriminado e não sofrer violência. Para não morrer de fome e para não ser morto. E a luta dos negros do Brasil que tem desafiado cotidianamente a política da marginalização e do silenciamento imposto aos negros desde a abolição da escravidão. Isso é um alento.
Mas e a mentalidade escravista, como lutar contra ela? Como lutar contra algo que tem sua existência negada? A mentalidade escravista é o próprio racismo. O pensamento supremacista. Diferente do que aconteceu em países como os Estados Unidos e a África do Sul por aqui o pensamento racista raramente se institucionalizou e isso tem sido utilizado para negar essa realidade.
Os Estados Unidos aboliram a escravidão em 1863. Já a partir de 1870 e 1880 leis de separação racial, as chamadas Leis de Jim Crow, foram estabelecidas. Em 1896 a suprema corte reconheceu o princípio do “separados, mas iguais”. Ou seja, houve uma gigantesca institucionalização do racismo. Nos estados do sul, durante quase um século, foi imposta a segregação de negros e brancos nos espaços públicos. Escolas, parques, repartições e até nos ônibus.
Na África do Sul a segregação racial teve início ainda no período colonial. Mas como política oficial do governo, o Apartheid entrou em vigor no ano de 1948. O Apartheid foi utilizado para separar brancos e negros na África do Sul, chegando muitas vezes, a aplicar remoções forçadas de famílias negras que viviam em zonas residências destinadas a apenas brancos. O que o caso dos Estados Unidos e da África do sul têm em comum e como esses casos se diferenciam do Brasil.
Em comum nessas duas realidades há o fato de o racismo ter sido institucionalizado, exposto de maneira explícita. Um racismo declarado seja através de leis, de discursos, de panfletos, de jornais ou de decisões, como a da suprema corte dos Estados Unidos que reconheceu o princípio de "separados, mas iguais". A institucionalização do racismo nesses países criou uma estrutura racista impossível de ser negada.
E no Brasil? Por aqui a mentalidade racista da nação é constantemente negada. Estou falando daquela mentalidade que resistiu à abolição da escravidão, juntamente com a política de silenciamento e negação. Afinal de contas já concordamos que Lei Áurea não logrou nem poderia lograr sucesso em abolir a mentalidade violenta racista e supremacista. Então, por aqui se pratica um racismo não declarado. Para entendermos o porquê dessa negação precisamos retornar um pouco à história por trás do desembarque da ideologia racista no Brasil.
O contexto no qual transcorre essa história é a metade do século XIX e início do século XX. Na Europa e nos Estado Unidos podemos dividir as teorias racistas, tidas como científicas, em duas partes. A primeira é a diferenciação e hierarquizaçãodas "raças". A ideia de que os seres humanos, assim como os cachorros, pertencem a raças distintas: O branco, o negro, o amarelo e o índio. E levando em consideração critérios como: o intelecto, as propensões animais e as manifestações morais seria possível hierarquizar essas raças em superiores e inferiores. Entretanto, mesmo essas teorias tendo sido construídas para colocar o homem branco como superior elas ainda reconheciam certo valor em outras raças. Para o Conde de Gobineau, amigo e interlocutor de D. Pedro II e famoso propagador da ideologia racista no Brasil, o branco não era superior em tudo, perdia para os “amarelos” no critério "propensões animais". Os negros, esses sim, eram inferiores em tudo.
A segunda parte das teorias racistas era o completo desprezo pela mistura, casamento e/ou contato íntimo entre indivíduos de "espécies diferentes". A verdade é que para a teoria racista original o horror não era a existência de raças inferiores que poderiam ser hierarquizadas e colocadas em seus devidos lugares, mas sim a mistura de raças, ou seja, a miscigenação. Mas como aplicar essa segunda parte da teoria racista em um país como o Brasil, que na metade do século XIX e início do século XX já era um país altamente miscigenado? A resposta é simples: Ignorando essa parte da teoria e importando somente aquilo que encaixava em nossa sociedade, ou seja, a hierarquização das raças.
Em outras palavras, no Brasil não se poderia ter uma separação estrita entre brancos e negros como pregava a ideologia racista em seu modo raiz. Por aqui ao invés do "separados, mas iguais" instituiu-se o "juntos, mas diferentes". A ideia de que é possível brancos, negros e mestiços viverem juntos e até se casarem desde que cada um saiba seu lugar na sociedade brasileira. Essa ideia de que cada "raça" tem seu lugar faz parte da mentalidade racista que resistiu a abolição da escravidão. Como por aqui esse pensamento não se institucionalizou em políticas declaradamente racistas e segregacionistas, ele é constantemente negado. Daí surge argumentos como "Não sou racista, tenho até amigos negros. Até trabalho com negros. Minha avó era negra". Sem perceber que isso faz parte do "juntos, mas diferentes".
Diferentemente dos Estados Unidos e África do Sul onde vigorou por muitos anos um racismo declarado por aqui se pratica o racismo velado, o racismo da boca pequena, dos comentários ao pé do ouvido, "das piadas inofensivas", dos ditados, dos olhares, dos pequenos gestos. Mas sempre negado. Eis que surge a pergunta: Que consciência precisamos desenvolver para combater esse tipo de racismo?
Primeiramente a consciência da dimensão do tráfico, leia-se, roubo de seres humanos africanos para o Brasil. Ter consciência da importância do trabalho do negro para a construção das estruturas mais fundamentais dessa nação em todos os aspectos. Ter consciência de que mesmo em situação precária esses seres humanos nunca deixaram de lutar e seguem lutando, hora de forma violenta, mas muitas vezes de forma hábil e sofisticada por melhores condições. A consciência de que a Lei Áurea aboliu apenas o sistema de posse de pessoas no Brasil, não tendo abolido a mentalidade racista de nossa sociedade.
Consciência de que passada a abolição foi posto em prática um projeto político de silenciamento, esquecimento, invisibilização e morte desses afrodescendentes. Projeto esse constantemente desafiado pela inteligência, criatividade, coragem e ousadia dos negros do Brasil. Consciência do tipo de racismo velado que opera no Brasil e que de forma alguma isso pode ser usado para negar a realidade.
Por fim, devemos ter a consciência de que sendo descentes de africanos, europeus, indígenas, asiáticos ou todas essas etnias juntas, se somos brasileiros temos o dever de conhecer e fazer as pazes com esse passado. Não escolhemos ser racistas, posto que isso seja algo que a sociedade nos impôs. Mas podemos escolher combater a reprodução dessa mentalidade em nós e não sermos racistas. Isso implica uma constante vigilância de nossos pensamentos e atitudes. Indo além, podemos escolher ser anti-racista e, além de combater a reprodução desse pensamento em nós, atuar na sociedade de maneira firme contra o racismo e a discriminação étnica e a favor de reparações justas e devidas pelo Estado à esses cidadãos brasileiros.
* Professor de História; licenciado em História (URI-Santo Ângelo); mestre em Desenvolvimento e Políticas Públicas (UFFS-Cerro Largo)